Tinha pouco mais de seis anos quando abri um Atlas pela primeira vez. Livro da minha altura, de metro e pouco, capa de couro marfim com as letras de Barsa em baixo relevo, gravadas em dourado (sim, cresci na companhia da “Encyclopedia Britannica”). Edição de luxo, diriam hoje. Mas naquela época, fim de 70, tratava-se apenas de um simples fascículo obrigatório do grande compêndio de variedades, e que só por isso merecia lugar de destaque na sala.
Não tínhamos dinheiro/espaço para construir uma biblioteca à moda inglesa, também acredito que mesmo se tivéssemos meus pais jamais copiariam tal tendência vigente em pleno calor perpétuo do Rio de Janeiro de então – e de sempre. Éramos básicos, e tratávamos nosso acervo literário mais como comida do que mobiliário. E assim devoramos tudo que passou pela pequena estante da casa, de gibis a Machado de Assis (e um pouco de revistas também, meu pai era leitor assíduo de “Planeta” e “Aquarius”, magazine mensal publicado pela Eubiose, grupo filosófico frequentado pela família).
Eu debruçado sobre o gigante, folheando página por página, maravilhado com os contornos de mar e terra, as sinuosidades dos rios e as nervuras das cadeias de montanha que recheavam os mapas. Eram folhas com riscos já prontos, mas que eu não demoraria muito a pintá-los com hidrocor e crayon e, assim, criar meu próprio mundo. O que fiz, de propósito inconsciente, foi traçar roteiros que hoje, 30 anos depois, tive a chance de percorrer.
Foram 56 dias, 16 cidades e parques nacionais, desertos, florestas, montanhas, praias, areia, asfalto e neve. Mais de 5.400 quilômetros rodados. O plano original era cruzar os Estados Unidos por terra, de costa a costa, de São Francisco a Nova York com escalas em Salt Lake City, Denver, Santa Fé, Oklahoma, Little Rock, New Orleans, Nashvillle, Chicago, Baltimore e DC. Mas em inverno pleno, o centro do país recebeu nada menos que 23 tornados em menos de um mês, além de forte nevasca ao norte e chuvas torrenciais a leste. Restou-me o oeste, Far West. Califórnia de norte a sul, com destinos definidos quase na véspera. Era parte da plano, pois resolver a vida em cima da hora é inteiramente eu.
Mapa na mão, mochila nas costas e pé na estrada. Pé de quem nunca pisou numa embreagem na vida, diga-se de passagem. E logo no paraíso das highways… Então, mais emoção. Trem, ônibus, carona e, por que não, caminhão. Câmera na mão, mochilão nas costas e pouco dinheiro no bolso. Low budget na medida do possível – não sou bom em fazer conta, prefiro fazer diferença.
Hoje, ao chegar em casa, reabri o Grande Atlas. Estava tudo lá como deixei há 30 anos, colorido de canetinha. A Europa marrom, o Brasil verde, as estradas em vermelho e o oceano azul fusquinha. E perto da Califórnia, em laranja, estava escrito “eu vou”.
This is the end.
Thanks to: Rafael Massote & Anthony Young, Heleno Leitão & Jimmy López, Simon & Garfunkel, Mamas & The Papas, Aderol, Cliff bar, Whole Foods, Eddie Geiger, Amtrak, River Inn, Jim-Ross Riley, James Taylor, Trader Joe’s, Curry Village, Greyhound, Mark Anthony, Brendas e Raquel Venâncio – que vacila, mas é gente boa.